sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Poema NONSENSE (NONSENSE?)

Walt Whitman / Fonte: Google Imagens.

Sem sentido... meu dia hoje, minha vida hoje
Talvez somente deduções patafísicas
ousariam explicar esta existência absurda agora;
meus atos, obsessões e gestos esdrúxulos ultimamente.

Até que, às vezes, tento ser discreto e silencioso,
como um minúsculo caramujo, mas, mas, mas...
Ontem, por exemplo, logo após o raiar de mais um dia
frio e gris, assim que as portas da cidade se abriram,
fui à rue des Lévis, comprar amêndoas e um pato fresco
para o jantar com visitas vindas de Reims
(passei o resto da manhã e a tarde cozinhando)
Lá chegando, de pronto viro alvo de inúmeras flechas
Ácido pensei: “por que todos me olham de tal modo,
estupefatos, como se eu fosse um ignóbil, ojerizante,
a encarnação do que há de mais grotesco na Terra
ou um dromedário pintado de cores psicodélicas?”
“Ah!... É isto!” – percebi, de novo retrucando, calado
Eu estava de bicicleta (que comprei e não paguei)...
... e nu, somente de gravata borboleta,
óculos redondos de aros pretos e mocassins
(indígenas legítimos, feitos com casca de árvore,
vindos de New Jersey, presente de Walt para mim)
Então ri... irônico, mordaz, continuando mes affaires,
mesmo sentindo o corpo congelar entre frutas e especiarias,
e enquanto a ave, gorda, era morta e depenada.
1892: sou uma vil novidade, um revés surreal,
um paradoxo gigante, um anjo caído nessa sociedade
hipócrita, preconceituosa, ufana, engatinhante.

Novamente estou em luta armada contra meu arquinimigo eu
Está difícil viver a vida orgânica que projetei para mim
... O trauma de não poder criar um novo Círculo Lunar
Maldita iluminação pública! Reunir-se nas noites
de lua cheia não faria mais sentido
Se eu tivesse vivido por volta de 1770,
teriam Erasmus Darwin e os outros brilhantes intelectuais
aceitado este anarquista na Sociedade?
... Não tenho lido mais as histórias de Mary,
nem a poesia de Byron ou os contos sobrenaturais de Poe
Não tenho ido mais às leituras e viagens em volta da fogueira
Há anos tento preparar Uma Festa para Agatha,
mas não consigo reunir os convidados ilustres
nem encontrar, em toda a Europa, chefs que materializem
o banquete insólito e nababesco que imaginei
Num rompante de fúria, quebrei minha dulciana do século XVI
Estou desenhando minha lápide; cansei de pedir a Van De Velde
Na madrugada, ao sair do Lilith Rendez-Vous, pelas vielas de Paris
sou atormentado, perseguido por uma sombra quasímoda
Minha compleição física (sou atarracado e manco) tem assustado
as crianças e até os vira-latas dos submundos de Montépin
Importei da Alemanha alguns fantascópios;
vou inaugurar em Montmartre uma casa de fantasmagorias
Semanalmente escrevo cartas a Whitman, enviando-as ao
Condado de Camden... sem obter uma resposta sequer
Meu amigo deve estar muito ocupado, sem tempo para mim,
decerto construindo elefantes para guerrear
contra os inimigos da liberdade e do amor livre.

Acho que não... Já faz algum tempo que fracassam
minhas buscas telepáticas; e agora esta carta da América...
Remetente desconhecido... ninguém mais conheço do outro lado
do Atlântico. Tomo coragem... abro... decifro o que diz o manuscrito,
um poema cujo acróstico dolorosamente noticia:
“Walter ‘Walt’ Whitman partiu em 26 de março”.

... Cortado pela tristeza funda, pela saudade infinda, pelo desamparo
e o vazio invernal de um órfão, que age como uma faca a penetrar
lentamente o estômago... debilitado murmuro uma frase apenas...
... a última: “O poeta louco morreu jovem, aos 73, e viveu como quis”.

(Fábio Torres).

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