domingo, 29 de janeiro de 2012

Poema O CANTOR (para Milton Nascimento)

Milton Nascimento / Fonte: Google Imagens.
Dançam serenas
as águas da noite azul
quase negra
Bailam as chamas
que ascendem orgânicas
do chão diamantino
No céu marinho navegam
barcas rutilantes
E perto da estrela guia
luzem por trás de lunetas
os olhos pasmos
de Copérnico e Galileu,
gigantes da astronomia,
a contemplar extáticos
a tão bela e insólita...
... voz do cantor.
Ele canta para o mar
Ou é o mar que canta pra Ele?
Ou será um dueto,
nas horas mortas,
na madrugada nua,
entoando cânticos à lua?
O tempo mareia
As ondas lânguidas
lambem seus pés e a areia
E as mãos de dedos longos
e anéis a lucilar na mansidão
singularmente afagam o violão
O que verseja o poeta
irmana-se aos falsetes do vento
E do coração à boca,
e da boca às imensidões,
canta o argonauta,
canta Orfeu a dor e o amor
A música visceral
ensolarando as vastidões.

(Fábio Torres).

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Poema DEUSDEDITH

Morro do Castelo com a Igreja de São Sebastião,
outubro de 1920, Rio de Janeiro / Foto: Augusto Malta.

Rio. A caminho do Cosme Velho, encontro, melancólico, Deusdedith
Rio, então, e pergunto: “como vais... aonde vais, meu bom amigo?”
E com um quase não-sorriso, a resposta: “vou como um rio, antigo,
a verter águas caladas; eu, mestre do riso, choro a minha afro-dite”. 

Nome da arte: alegria. De todos arrancava risadas, e de tudo se ria
Assim era ele, presente divino àqueles que, sorrindo, fugiam da dor
E agora, separado do sorrir, vive morto a procurar tão amado amor
Só, nos lugares idos da cidade risonha; dia pós noite, noite pós dia. 

“Palhaço! Sorria! Onde a perdeste? Já foste à Igreja de Santa Luzia?
Por ali havia a Praia e o Morro do Castelo” – indaguei, rindo sozinho
Soam gargalhadas de Carlos Sampaio. Diz o triste e quedo moinho:
“rio não mais... Sim, à Esplanada fui! E lá a memória sequer jazia!“ 

Arrasado como o Morro, e com todos a rir da sua cara ferida e nua,
sem máscaras ou pinturas segue o bobo pelas revelhas vias do Rio,
de janeiro a dezembro, nos carnavais sorridentes, no calor, no frio...
Continuando o rio, escuro e fundo, pairado entre as sombras da lua. 

De novo sorri: “há um resto de pedra no chão... pedaço de ladeira,
a primeira rua do Rio. Estaria Ela na esquina, em pé a te esperar?”
E amargo ele ri: “Misericórdia! Naquele troço o sol me fez desmaiar!
... Musa! Canta! As estrelas rirão, e nos acharemos dessa maneira”. 

Lapa, Santa Teresa, Laranjeiras... Rio, esses cantos ainda são teus!
Onde não procurar? Praça XV, Arco do Teles... Ride! Ainda existem!
As lágrimas negras do rio que corre nos leitos extintos não desistem
E separado do sorrir... por amar vagou até a morte o palhaço deus.

(Fábio Torres).

Arrasamento do Morro do Castelo, 1922, Rio de Janeiro /
Foto: Augusto Malta. 

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Poema O CAÇADOR DE ÁTOMOS

Poe eticamente ele pensa
Poe eticamente ele fala
Poe eticamente ele existe?

O caçador de átomos
sonda, explora, esquadrinha,
apaixonadamente o cosmos
Nada escapa aos seus sentidos
Ele tudo capta... captura
Com suas lentes mágicas
Suas lupas, seus telescópios,
microscópios, periscópios,
suas câmeras Sherlock Holmes
Com seus estetoscópios,
pacientemente, ele ouve os pulsares:
os corações do mundo, os universos,
os sons da vida, os bioversos,
os sussurros do amor, os multiversos...
Com os olhos, o faro, a astúcia
e a sabedoria de Hercule Poirot,
ele investiga e descobre
o mentor do crime, o autor da arte
E com a força, a intrepidez
e os sonhos de Robur e Nemo,
ele viaja, viaja, viaja, viaja, viaja...
Em suas magníficas máquinas voadoras
Em suas extraordinárias baleias mecânicas
Em seus dirigíveis, aviões,
helicópteros e foguetes
Em seus navios e submarinos
Com suas roupas de astronauta,
trajes de homem-peixe e escafandros
Com seus astrolábios, bússolas e sextantes
Ele aterrissa e aporta em paraísos
ou em lugares ermos e inóspitos...
... em oásis e desertos
Descrevendo trajetórias fantásticas,
traçando histórias... contos insólitos
Navegando nas profundezas da poesia
Deslizando em águas calmas
Surfando na crista das revoltas vagas
Flutuando entre os oceanos e os astros
Píton a vasculhar todas as tocas,
todas as grutas dos planetas
Grifo-de-rüppell planando na Terra
a 20.000 pés, ou rasando nas
planícies, crateras e montanhas da lua
Martin-pescador de Vorpommern
buscando arenques no fundo do Báltico  
Arquetípico cachalote, mergulhando
a 3.000 metros, fugindo dos Açores
Moby Dick!... E seu portentoso espermacete,
devassando... desvendando os sete mares
das mil e uma noites
... Assim ele vive
Caçando átomos
Fumando seu cachimbo dinamarquês
e tomando o chá das cinco
a bordo do Orient Express
Na primeira classe
De Paris a Istambul.

Poe eticamente ele pensa
Poe eticamente ele fala
Poeticamente ele existe!

(Fábio Torres).

sábado, 14 de janeiro de 2012

Poema CONTO GÓTICO

Ergue-se o cenário expressionista
num fragmento dos anos de 1930
Onde as cores do mundo se arruinam
sem que a metrópole pressinta.

Bandos de corvos digladiam-se no ar,
disputando restos em irritante grasnado
Ancorado na atmosfera noir,
mora o terror no porto abandonado.

Extinta a perversa equipagem,
dorme ao cais a sombria belonave
Decrépito, o ascoso capitão
espera quem sua cova cave.

Só... doente, quase morto,
cansado de tanta vida devastar
Agora devastado, amarga o fim,
no leito fétido a agonizar.

Crateras profundas e vazias,
buracos negros de canhão:
o par de olhos do louco,
que acena para vultos no porão.

O traje é a mesma e suja jaqueta,
d’onde caem os últimos botões,
O velho bucaneiro – pele, pústulas e ossos,
expele as mais imundas secreções.

Ele! Secretório de histórias macabras!
Do mar à terra, as sevícias do réprobo
Decapitou e empalou entes supliciados
a súcia comandada pelo ímprobo.

Vociferando, pendulando o quepe rasgado,
regia a malta, os seres malévolos
A postos nas águas, explodiam cidades,
erradicavam inocentes povos benévolos.

Sob a ferrugem do convés esburacado,
ferramentas gastas de tanto matar
O funesto olor, o mastro gigante a cair 
E os ventos parolam, no horror a pairar.

Tremulam andrajos de auriflamas,
como asas de demônio a farfalhar
Ali não há o branco, o verde ou o azul
O céu é pardo; e negras, as nuvens a planar.

E nesse mar não existem peixes,
ou gaivotas nas turvas águas a voejar
Pois do cavername saltam monstros,
à noite, prestos a tudo devorar.

Branca somente a fina epiderme do mau
Ao ver o muco, indaga um corvo: “És um tritão?”
Sem fôlego, sem mais ardis, responde,
num vaguíssimo suspiro: “Eis o capitão...”

Não sente fome, não sente sede,
nem calor, nem amor, nem frio
Quase vivo perdura, sentenciado a...
... jamais abandonar o navio.

(Fábio Torres).