sábado, 5 de novembro de 2011

Poema A CASA

Fonte: Google Imagens.
Durante 7 anos
De segunda a sábado
De manhã, às 7
Eu no Km 7,
A 7 mil léguas do mar
Na estação do trem
que apitava e saía,
pontualmente,
às sete e sete
Curioso horário
Estranhas casas
Não, não eram sete
Eram duas
Lado a lado
Exatamente iguais
... Ou será que não?
Caberiam, então,
ao jogo dos 7 erros?

Ao longo de sete anos da minha vida,
a máquina preta
esfumaça o ar da manhã fria
E soando o maravilhoso apito,
parte na cadência dos sons
da mecânica orquestral
Puxando os vagões lotados
de gente, de tristeza, de alegria
A locomotiva sobre os trilhos
da linha ocidental, a primeira ferrovia,
desce a serra, leva-nos ao longe,
aos sonhos, à vida, avançando lenta
E da janela, da cortina de vapor,
eu, atento, as via
Na elevação após o rio magro e a planície,
distanciadas da cidade pobre e modorrenta,
entre as árvores antigas,
contemporâneas suas,
semeadas no século dezenove,
por volta de 1860.

Na janela, no vapor, meu rosto,
meus sentidos, parados, fascinados,
fixados naquela abstrata cenografia
Até a escuridão do túnel
apagá-la da minha visão
Mas não dos meus pensamentos verneanos
Seriam duas casas de outro mundo?
Quem ali nasceu? Quem ali nascera?
Quem ali viveu? Quem ali vivera?
Quem ali morreu? Quem ali morrera?
Havia algum herdeiro... ou herdeira?
Nas conversas de trem, procurei saber
Com os velhos, com os sãos, com os sábios
Mas ninguém sabia
Somente que eram assombradas:
antros de seres horrendos, nauseabundos,
de corpos amorfos tomados pelo antraz
e dos espíritos notívagos e bestiais
das famílias destruídas pelos flagelos
de doenças degenerativas e terminais,
pelas discórdias, sofrimento, infelicidade, agonia.

Para eles, os simplistas, os simplórios,
a história das casas era vazia,
como vazias eram elas, há décadas,
fechadas, sem luz, esquecidas, sufocadas
Era o medo do desconhecido,
o pavor que assolava o povo daquele lugarejo
Não raros foram os domingos
em que procurei decifrá-las
Sonhando, absorto, viajando
nos sentimentos e enlevos
que aquelas duas imensas casas
só em mim despertavam... estimulavam
Eu sozinho, irrequieto, resoluto,
percorrendo a gare deserta,
buscando os melhores pontos de observação,
com a luneta de bronze do meu avô materno
nas mãos, aos olhos, à mente
Através das lentes arranhadas e embaçadas,
o remoto explorador, apesar dos caules e folhagens
e da bruma que normalmente as envolvia,
pacientemente, persistentemente,
tal qual Paracelso e sua alquimia,
esquadrinava os invólucros murais,
desvelando o fantástico da arquitetura
que magistralmente as definia.

... E, certa vez, finalmente,
no último dos sete anos,
no feriado do dia 7,
numa manhã quente, arvorei-me em estar,
presencialmente, com elas, tocando-as, sentindo-as,
vivendo-as, intensamente, verdadeiramente
Faltando 7 para as 7, com o sol na testa,
reluzindo meu semblante impávido e jubiloso,
atravessei a estrada de ferro e o riacho raso,
caminhei a campina e escalei a escarpa vegetada,
chegando ao fim da minha inquietação,
ao clímax do meu êxtase, ao platô,
onde não havia limítrofes – cerca, gradil ou portão
Descobri que nada condizia com o que se dizia
As majestosas árvores, frutíferas,
nascidas da femina terra ocre,
não eram estéreis, floravam
E as casas, salubres, não continham covas, túmulos,
criptas, masmorras... nem seres cobertos de carbúnculos
Nas duas casas, há tanto e tanto tempo desabitadas,
nasceram, viveram e, naturalmente,
morreram entes felizes, que primavam por
iluminar, aerar, respirar, transpirar, festejar, conviver,
amar, desejar, afagar, cultivar, cativar, construir, comover
e se voltar para si... ao cosmos
Os espaços de poucos septos, o partido arquitetônico,
os diversos elementos compositivos, o imaginário,
os signos, o imaterial, os entrelaces estilísticos,
a permeabilidade com a natureza, os hábitos... revelavam,
em cada morada, indivíduos plenos e transcendentes
Considerada a simetria em tão magnífica obra,
descrevo as duas descrevendo uma.

O átrio heptagonal sob a gigantesca clarabóia
As sacadas, as mansardas, as rosáceas de sete pétalas
A escada de sete lanços, cada qual com sete degraus,
inteiramente de ônix verde, inclusive balaustradas e corrimãos
Os inúmeros artefactos integrados de ferro singularmente forjado,
com formas de motivos místicos – celestes e marinhos
Muitos e generosos vãos envidraçados de portas e janelas
Vinhos na adega e candelabros de sete chamas na capela
Vasos e lustres de alabastro
Pinturas em tela retratando primorosamente
a floresta de baobás de Madagascar
Telhado de Telhas cerâmicas de Marselha
Lambrequins nos beirais
Platibandas e frontões circundados por cornijas
Tímpanos repletos de arabescos
No alto das quinas, nos vértices,
marcando a grande verticalidade da construção
e a vasta dimensão da planta quadrangular,
os acrotérios de pedra lavrada,
servindo como pouso de criaturas-aves,
semelhantes a grifos, com asas erguidas,
de grande envergadura, rostro avantajado,
esculpidas no mármore negro,
cortado em delineações surreais,
num contundente expressionismo
de belíssima ascenção gótica
A cantaria, às vezes lisa, outras sutilmente decorada,
também conformava cercaduras, cunhais,
cachorros, soleiras, bocéis, vergas e umbrais
As paredes eram brancas ou beges ou azuis
ou recobertas pelos coloridos das composições zoomórficas
e tramas e geometrias caleidoscópicas da arte azulejar
Assim como como os chãos, revestidos de ladrilhos
que compunham mosaicos de desenhos mágicos. 
Sobrenaturalmente, as casas eram limpas,
conservadas, preservadas, sem rachaduras ou trincas,
não esmaecidas, não invadidas, não depredadas
Como que vivas, mesmo que em letargia
E defesas, como se algo (ou alguém?)
não as quisesse mortas... erradicadas
Elas se mantinham intactas, prontas, como se... esperassem
Como se, a qualquer momento, seus amados habitantes regressassem.

... A maior descoberta ainda estava por vir.

Dispostos em dois planos,
quartos, salas, galerias, varandas e colunas corolíticas
rodeavam todo o pátio mourisco, ajardinado,
com sete palmeiras reais e aberto aos céus
Cheio de gangorras, balanços, escorregos,
carrocéis, triciclos, bambolês, bonecas
e tantos outros brinquedos espalhados
No centro havia um enorme espelho d’água translúcido
de formato irregular... orgânico
Surpreendentemente, extenso e largo corredor subterrâneo
de teto abobadado interligava as duas vivendas,
iluminado, no âmbito do pavilhão lateral,
por dois grupamentos paralelos de sete lamparinas
fixadas no piso de calcário amarelo brilhante,
e por sete domus semi-esféricos no intervalo
de sete braças ensolaradas que, aparentemente,
à superfície, separavam as duas casas, os dois enigmas
As fontes límpidas também se comunicavam,
compartilhando as mesmas capilaridades aquíferas
na rocha abaixo do solo, provindas das nascentes
escondidas no topo das longínquas altitudes.    

Não... não eram duas
Era uma casa apenas
Onde nasceram, viveram e morreram...
... onde habitaram duas famílias irmãs.
Hoje, eu, velho e são, sábio não, aos 77,
sou amargo, infeliz, por saber
que a cidadezinha, a estação ferroviária,
os trilhos, a maria-fumaça, o riozinho,
o prado, a encosta, o planalto,
as árvores viçosas, as casas... a Casa...
... só existiram durante os sete anos
da minha juventude em que passei
imerso num... ... ... ... ... ... ... profundo coma.

(Fábio Torres).

Fonte: Google Imagens.

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